sábado, 3 de abril de 2021

0223 Porto Sonoro - Nota de Intenções

 

Porto Sonoro é um projecto cinematográfico de animação que poderá integrar-se nas narrativas experimentais ou não convencionais. Caracteriza-se pela colagem de falas capturadas de um modo furtivo no espaço público da cidade do Porto (à semelhança do procedimento na fotografia de rua onde os fotógrafos caçam o momento fotográfico) e pela exploração dos vários momentos que surgem na interligação posterior dessas falas.

 

Utiliza material sonoro que será gravado na cidade do Porto durante a fase de desenvolvimento do filme, assim como material sonoro já gravado no âmbito de “Phonambient” um projeto realizado pelo colectivo de músicos da cidade do Porto, Sonoscopia. “Phonambient” documenta o património sonoro contemporâneo e reúne, numa base de dados digital (www.phonambient.com), os sons que caracterizam, entre outras, a cidade do Porto. Este arquivo inclui paisagens sonoras, sons localizados, excertos musicais, fonética e fonologia.

 

Como identificado pelos músicos da Sonoscopia, o som que mais caracteriza a cidade do Porto é a voz das pessoas desta cidade: o sotaque e a musicalidade na sua fala que tem vindo a ser cada vez menos audível à medida que famílias inteiras têm vindo a ser despejadas para fora da cidade, graças às políticas de turistificação do centro histórico. Juntamente com o desaparecimento da habitação permanente, as mercearias, as pequenas oficinas, barbearias e outros pequenos negócios locais desaparecem também, tornando a cidade, em alguns períodos do ano, algo sinistra com a presença quase exclusiva de turistas e o som característico das rodinhas dos trolleys sobre a calçada.  

 

A gentrifição, que tem vindo a ocorrer sobretudo em Lisboa e Porto, encontrou agora um momento de abrandamento do ritmo muito acelerado verificado nos últimos anos mas que deverá retomar em pouco tempo, assim que a janela sobre a pandemia se abra. Este filme contribui para o diálogo emergente sobre o futuro das nossas cidades e o direito de vivermos nelas.  

 

Cada momento do filme resultará do material gravado um pouco por toda a cidade; na rua, nas adegas, nas ilhas, na feira da Vandoma, jardins, mercados e estação do metro ou comboio. O modo furtivo da gravação permitirá registar a espontaneidade dos intervenientes. A construção do filme apoiar-se-á assim totalmente, no tecido sonoro da cidade do Porto e da sua gente e deverá desensarilhar-se como um novelo, numa linha que será encontrada a partir das gravações.

 

A partir do arquivo de sons já existente combinado com a recolha de novos sons, pretendo abordar num filme de animação com uma duração de aproximadamente dez minutos, a vida que ainda existe mas se tem vindo a perder no centro histórico do Porto. As texturas sonoras serão as estórias das “pessoas que lutam muito para terem muito pouco e com muito pouco conseguem fazer muito” e que constituem a identidade da cidade. De alguma maneira poderá dizer-se que este filme se desenrolará um pouco como o conto Mrs. Dalloway de Virgínia Wolf onde o tempo é indefinido e a acção percorre o espaço mental e sonoro de e entre vários personagens e o que os rodeia. Os músicos na rua, os passos, o trânsito, uma mulher que pede repetidamente aos berros que lhe paguem uma sopa; os aforismos, a gíria e o calão; o efémero e anónimo e também poético de todos os dias comuns; os lugares também mais ou menos comuns; a riqueza de carácter das pessoas no seu valor expressivo e no conteúdo do seu discurso. É uma procura da alma da gente desta cidade e da sua pulsão naquilo que a distingue e ao mesmo tempo aproxima a todas as outras gentes.

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