domingo, 4 de abril de 2021

0227 Guião Cinematográfico - 4 cenas interligadas

 

CENA 1

 

 

EXTERIOR – RUA DO BONFIM – DIA

 

Num plano panorâmico surge ao fundo na curva o autocarro 20 e sobe a rua do Bonfim num ritmo acelerado 

 

 

INTERIOR – AUTOCARRO – DIA

 

Uma parte dos passageiros está absorvida na conversa de uma mulher de meia idade que não esconde a sua inquietude face ao desconhecimento sobre o paradeiro de uma amiga que tinha ido ao médico nessa manhã. Mais atenta a si mesma, no diálogo pretensamente sensual que mantém com um dos varões do veículo, está uma outra mulher. A cada chamada não atendida, a primeira expõe perante os demais uma ansiedade crescente.

(Plano geral sobre a mulher do varão enquanto se ouve a mulher que fala ao telemóvel)

 

- Foda-se, onde é que ela anda?

 

Nisto, liga-lhe a filha, já industriada pela mãe a procurar a amiga.

 

- Estou, Carla, então, soubeste alguma coisa?”.

 

Os passageiros olham para a mulher, suspensos do desenlace.

(Grande plano sobre um dos dos passageiros seguido de outro sobre outro passageiro)

 

- Caralho, estou aqui enervada, não sei se ela foi outra vez ao hospital, se... ai, espera, está-me a ligar a coisa, a Laurinda, deixa bêr, eu ligo-te já

 

Tudo isto é comunicado com gestos largos e em voz alta, como se não houvesse uma audiência atenta ao problema. Depois de mais uma inglória troca de impressões, desta vez com a Laurinda, uma nova chamada volta a interromper a conversa.

(Plano Geral sobre a mulher do telemovel)

 

 

- Péra, péra, está-me a ligar a Jéssica, filha da Fatinha, que ela esteve no hospital com a Zulmira, pode ser que ela tenha alguma novidade”.

(câmara voltou-se para a mulher do varão em grande plano que olha com ar de descaso para a outra mulher que não pára de falar enquanto sopra para as unhas de gel novas)

 

De um dos bancos do autocarro ouve-se um homem de voz pedregulhosa.

 

- Veja lá se fala mais alto, que eu agora também estou interessado.

 

Indiferente à provocação, tal como o resto dos passageiros, pendurados na curiosidade sobre o paradeiro da Zulmira, a mulher grita.

 

- Estou, Jéssica! Então, já sabes alguma coisa? Estou aqui aflita, já liguei um ror de bezes para a Zulmira e ela não atende, caralho.

(câmara mantem-se em grande plano na mulher do varão)

 

 

De repente, um assomo de calma instala-se na voz ao telemovel

 

- Pronto, pronto, antes assim. Não, deixa, deixa, eu ligo-lhe.

 

E a chamada termina. Como se acendesse um cigarro no outro, a mulher telefona à filha.

 

- Estou, Carla, olha, falei agora com a Jéssica e está tudo bem. A Zulmira saiu para o médico e deixou o telemóbel em casa.

 

Tranquilizada pela notícia, embora sem esconder um desencanto com o frouxo esvaziar do drama, a audiência desfaz-se e cada passageiro do 20 volta às preocupações do seu próprio mundo.

(plano geral dos vários passageiros)

 

Na paragem seguinte, a mulher do varão sai do autocarro.

 

 

CENA 2

 

 

EXTERIOR - BAIRRO – DIA

 

Um plano panorâmico mostra um bairro no Bonfim. Um homem de camisola às riscas fuma na janela. A mulher do varão surge ao lado na sua janela e acende um cigarro. Fuma enquanto olha as unhas. O companheiro passa por baixo saindo pela porta do prédio.

 

Ela interpela-o

(Grande Plano)

 

- Oh ´môr já bais? És fodido...

 

 

CENA 3

 

 

EXTERIOR – FEIRA DA VANDOMA - DIA

 

Outrora a fervilhar de comércio, entusiasmo e línguas soltas, a Feira da Vandoma é hoje apenas uma memória, convocando a nostalgia de quem ali animava os seus sábados. Uma senhora de idade alimenta um par de gatos vadios. Das casas em redor não vem sinal de vida, embora uma ou outra soleira tenha ainda vestígios de noites passadas ao relento.

(A câmara mostra num plano panorâmico o lugar da antiga feira da Vandoma enquanto se ouve um homem (Manel) e mulher que discutem)

 

- Quem, eu? Olha, só benho quando é pra ir buscar o bibeiro qué prali

- Bai pró bibeiro, bai pró caralho mais belho, bai pra outro lado

- Oh também tás...

- De cornos nenhuns também tás tu

- É ela, olha olha

 

(Plano Geral mostra a mulher com um carrinho de compras que alimenta os gatos)

 

- Foste tu?

- Oh tá calada não fui eu nada! Olha, olha, espera aí! Olha, olha, agora pró meio dia faz um bacalhauzinho

 

 

CENA 4

 

INTERIOR – ADEGA – DIA

 

Numa adega repleta de imagens do Porto maior campeão do mundo, sentados à mesa, uma mulher (Gina) e um homem (Filipe) conversam

(Plano Geral sobre a mesa)

 

- Eu alinhava contigo a metade cada um, agora sozinha eu não quero, pra que quero tanto bacalhau? Agora só metade? Não foi, Manel, o qu´ele falou? 35 euros uma caixa de bacalhau. Alinho contigo a meio por meio. Alinho na boa

- É preciso ver a qualidade do bacalhau

- É da Noruega

- Oh...

- Tá caladinho da Silva

 

Gina olha para a mesa ao lado onde um cliente apontando para o interior do balcão pede uma bifana e conversa com outro cliente e com o proprietário da adega

(Grande Plano sobre a Gina seguido de plano geral sobre a mesa do António)

 

- Sr. Engenheiro, uma dessas.

- Diga António, diga lá

- Qualquer coisa para mastigar

- Já sabe que é com piri piri

- Oh, por acaso...

- Não...por acaso até tem sempre picante

- Ele diz que tem sempre picante, pra mim, faz cócegas

 

Gina volta-se para o Filipe que a ouve sem interromper

e continua:

(Grande Plano sobre a Gina)

 

- O meu filho sempre foi muito aventureiro como eu, sempre. Eu sou alentejana. Ele nasceu em Lisboa na maternidade da Estefânia mas foi criado no Alentejo com a minha falecida mâe. No entanto ele estudou em Portalegre. Alcançou bolsa de estudo era um estudante do carago. Foi pra lá...... e de padre .....não...ó senhor professor, O senhor não fez bem porque o filho de fulano devia passar. O meu filho então respondia-lhe: devia passar porquê? Sr. Padre...Devia passar porquê? Se não sabia...Ah mas os senhores pagam. O pagar não é nada! Eu aprendi que pobre, eu fui pobre e aprendi que, a minha mãe levou-me para a primeira classe pra Lisboa, pra não perder a primeira classe, depois fui para o Alentejo, se eu alcancei bolsa de estudo, agora vou passar uma pessoa se não sabe, eu quero la saber que paguem! Eu dou mérito às pessoas que o merecem (...) Eu passo quem sabe! E os padres às vezes ficavam lixados por eu passar os que tinham menos dinheiro, mas se eles sabiam eu tinha que os passar. E então eu para não me chatear...Oh sr. padre eu desisto de ser aqui professor e vou procurar outra vida. E foi para a Guiné. Com a namorada que é de Braga.

 

Conheço gente de muitos lados, de muitos teatros, casas de prostituição...A minha vida só me diz respeito a mim, ah? Dei ........aos meus filhos todos. Tenho uma filha que é....  

 

Enquanto eu tive, ele era meu amigo, depois não precisam de dinheiro e ele lixou-me. Mas eu sou a mesma mulher. Ele que o guarde .....do morangos com açúcar...Olhe ó senhor eu vou-lhe dizer uma coisa, fiz a vida que fiz...Olá como está? Não tenho nada, mas tenho os meus filhos bem. Do meu corpo saíu tudo! 

Marcos Cruz

Vitor Hugo Rocha

sábado, 3 de abril de 2021

0226 Porto Sonoro - Caracterização do ambiente do filme



 

0225 Porto Sonoro - Caracterização de personagens

António 

Cliente da adega do Alfredo Portista. Expressa com eloquência o seu gosto pelo picante

Filipe

Cliente da tasca, ouve a Gina enquanto pondera sobre a compra de um bacalhau a meias com ela por 35 euros.

Gina

É uma mulher alentejana com 56 anos de idade, mãe de 3 filhos, prostituta. Começou “a vida” com 27 anos no Cais do Sodré em Lisboa. Nessa altura ganhava 250 contos e o primeiro filho andava na primeira classe. Conta estórias da sua vida e dos filhos

Manel (nome fictício)

Tem cerca de 55 anos, casado ou junto, de ar estafado e campeão de bilhar de bolso. A coçadela constante denuncia a actividade profissional inexistente. Frequenta a feira da Vandoma vazia onde ocasionalmente arruma uns carros. Não esconde um furto de telemovel. Usa bigode e mosca o que sugere ser um fâ de Frank Zappa. Faltam-lhe alguns dentes na frente e ficou espiritualmente nos anos 80.

 Mila (nome fictício)

Mulher do Manel. Tem cerca de quarenta anos. Dá show no varão do autocarro e fuma cigarros enquanto contempla as novas unhas de gel na janela. Apesar de um quilinho ou dois a mais tem um aspecto desportivo. Guna a tempo inteiro.

Mulher do telemóvel

Tem cerca de cinquenta anos, gesticula muito e fala ao telemóvel

 






 

 


0224 Porto Sonoro - Sinopse

 

Uma viagem pelos resistentes sons da cidade do Porto

0223 Porto Sonoro - Nota de Intenções

 

Porto Sonoro é um projecto cinematográfico de animação que poderá integrar-se nas narrativas experimentais ou não convencionais. Caracteriza-se pela colagem de falas capturadas de um modo furtivo no espaço público da cidade do Porto (à semelhança do procedimento na fotografia de rua onde os fotógrafos caçam o momento fotográfico) e pela exploração dos vários momentos que surgem na interligação posterior dessas falas.

 

Utiliza material sonoro que será gravado na cidade do Porto durante a fase de desenvolvimento do filme, assim como material sonoro já gravado no âmbito de “Phonambient” um projeto realizado pelo colectivo de músicos da cidade do Porto, Sonoscopia. “Phonambient” documenta o património sonoro contemporâneo e reúne, numa base de dados digital (www.phonambient.com), os sons que caracterizam, entre outras, a cidade do Porto. Este arquivo inclui paisagens sonoras, sons localizados, excertos musicais, fonética e fonologia.

 

Como identificado pelos músicos da Sonoscopia, o som que mais caracteriza a cidade do Porto é a voz das pessoas desta cidade: o sotaque e a musicalidade na sua fala que tem vindo a ser cada vez menos audível à medida que famílias inteiras têm vindo a ser despejadas para fora da cidade, graças às políticas de turistificação do centro histórico. Juntamente com o desaparecimento da habitação permanente, as mercearias, as pequenas oficinas, barbearias e outros pequenos negócios locais desaparecem também, tornando a cidade, em alguns períodos do ano, algo sinistra com a presença quase exclusiva de turistas e o som característico das rodinhas dos trolleys sobre a calçada.  

 

A gentrifição, que tem vindo a ocorrer sobretudo em Lisboa e Porto, encontrou agora um momento de abrandamento do ritmo muito acelerado verificado nos últimos anos mas que deverá retomar em pouco tempo, assim que a janela sobre a pandemia se abra. Este filme contribui para o diálogo emergente sobre o futuro das nossas cidades e o direito de vivermos nelas.  

 

Cada momento do filme resultará do material gravado um pouco por toda a cidade; na rua, nas adegas, nas ilhas, na feira da Vandoma, jardins, mercados e estação do metro ou comboio. O modo furtivo da gravação permitirá registar a espontaneidade dos intervenientes. A construção do filme apoiar-se-á assim totalmente, no tecido sonoro da cidade do Porto e da sua gente e deverá desensarilhar-se como um novelo, numa linha que será encontrada a partir das gravações.

 

A partir do arquivo de sons já existente combinado com a recolha de novos sons, pretendo abordar num filme de animação com uma duração de aproximadamente dez minutos, a vida que ainda existe mas se tem vindo a perder no centro histórico do Porto. As texturas sonoras serão as estórias das “pessoas que lutam muito para terem muito pouco e com muito pouco conseguem fazer muito” e que constituem a identidade da cidade. De alguma maneira poderá dizer-se que este filme se desenrolará um pouco como o conto Mrs. Dalloway de Virgínia Wolf onde o tempo é indefinido e a acção percorre o espaço mental e sonoro de e entre vários personagens e o que os rodeia. Os músicos na rua, os passos, o trânsito, uma mulher que pede repetidamente aos berros que lhe paguem uma sopa; os aforismos, a gíria e o calão; o efémero e anónimo e também poético de todos os dias comuns; os lugares também mais ou menos comuns; a riqueza de carácter das pessoas no seu valor expressivo e no conteúdo do seu discurso. É uma procura da alma da gente desta cidade e da sua pulsão naquilo que a distingue e ao mesmo tempo aproxima a todas as outras gentes.